Desvenda


Desvenda o mistério
Decifra o infinito
Guarda a meiguice
Finta o medo
Ama o acaso
Olha com olhar de menino
Brinca como se não hovesse amanhã
Sente intensamente
Faz festas no pelo dos cães e dos gatos
Lembra-te de seres
Esquece-te de ti
Torna-te nada
E nesse nada desabrochará tudo
Sê uno com o espírito e o coração de Deus
Sê a divindade
És a luz.

Marco Gonçalves

Sou como o teu
quarto, un bateau
ivre, balanço
com o vento da manhã.

E como tu
sou o terror
convocado pelos livros
carregados de vazio.

José Carlos Soares

As Dez Idades de Eros


Os tempestuosos quinze anos
Os vinte turbulentos
Os trinta sedentos
Os destrambelhados quarenta
Os erráticos cinquenta
Os avançados sessenta
Os serenos setenta
Os exaustos oitenta
Os anestesiados noventa
Os humildes cem anos!

Zetho Cunha Gonçalves

Yo no recuerdo sino el sabor de la duda


Yo no recuerdo sino el sabor de la duda como un alud de fresas sobre las blandas escamas de mi boca.
He olvidado el lugar donde las nieves más azules consiguen resistirse a su abandono.
He olvidado ya hace tiempo la dócil lentitud de los molinos.
Mucho antes de la hora de los vagabundos, y a través de arboledas heladas, caminé largamente hacia la mansedumbre.
Busqué los prados donde pastan los bueyes más antiguos.
Rocas más amarillas que el silencio puse sobre mi incertidumbre.
Rocas más dilatadas que algodón.
Y no quedó otra cosa que la duda fluyendo dulcemente, como nata derretida.
Yo no sé si, después de la muerte, alguien vendrá a dormirme con leyendas aprendidas en lugares lejanos.
Yo no sé si el aguacero de la nada apagará los hornos de la mendicidad.
Pero es seguro que palabras absolutas, más absolutas que vasijas de aceite derramadas, me estarán esperando al otro lado del olvido.
Y entre esas voces acuñadas sobre moldes de arcilla y certidumbre, mi voz sonará extraña como tomillo arraigado en las cuestas del amor.
Mi voz será como un paréntesis de duda.

Julio Llamazares

A Cada Um as Suas Armas


A cada um as suas armas, as mulheres que amou,
os homens que defendeu do juízo moral dos outros,
a cama onde um dia se viu abandonado,
rodeado de cruzes e velas.
Das linhas que tremo, roda-me a lâmpada
interior à carne, e a claridade
chega aos ossos numa duração insaciável.

Falar com a minha voz depois de tantas outras,
dos condenados a quem roubaste as cartas,
copiando aquele ritmo que se aferrava à carne
e dizias que os viste cair
depois de os teres seguido para a guerra, mas agora
que já ninguém faz luto pelos rouxinóis
e toda a gente escreve poemas,
não te podes valer de mentiras
nem de verdades,
já nem sequer do antepassado
enterrado num canto do pátio
— homem que teve os seus méritos.

Se a folha ainda me arranca um traço,
pisando-me os ossos da mão,
a distância é o meu único assunto.
De olhos fechados, entretenho-me
com a sensação de entrar em comboios remotos,
a tresandar a esquecimento para ser embalado
pela trepidação desse traço contínuo.

Terra e água num copo, a raiz amarga
que lá tenho escuta atentamente,
moendo tudo para épocas futuras.
Lá fora, o mar como um pássaro só
descansa, revê todos os finais,
mil capitães adormecidos enquanto os navios
se entrechocam docemente.
As noites passam em braços,
levanto a casa, feita de pedra negra.
Atraídos, os cometas caem longe
para que os sinta.
Os jardins escutam as flores,
a morte diz o nosso nome
e vimos esperá-la formando filas.

Diogo Vaz Pinto

Redondo Palpável

das flores ao mundo
do mundo às flores

é temendo que se atravessa

a mão aprende o que compreende cria
figurinista do céu em estado de excepção
toca ao dia horas extraordinárias

translação a quente
no leito cantante

uma existência livre de vontade

António Poppe

Ideia Repentina de Ser Nada


Ideia repentina de ser nada.
Como fuzil, tão súbita e estranha,
queda por dentro, vertigem em chama –
pedais e volante, curva de estrada.

Noite diáfana em luz que desliza.
Pontos que dançam. Suaves traçados.
Fundo que assomas por todos os lados.
Chuva brilhante, na estrada que gira.

Estrada, estrada veloz, espécie de espuma.
Morrer é fácil – e então a dor?
Velocidade. Desejo de ser pluma –

o corpo ardente será o que for.
A carne e a consciência… entre uma
e outra – tanto dança, como dor.

Adriana Crespo

Não me Identifico com a minha Infância


Não me identifico com a minha infância. Não me revejo
na minha juventude. Não morro de amores pelo rapaz
que era há vinte anos. Não quero saber quem sou e, desde já,
não me interessa quem possa vir a ser. Contudo, em viver
ponho um enorme gosto, um prazer calmo. Sem pensamento
e sem identidade. Pequenas coisas britânicas – um chá,
uma cerveja, um vaso, um tecido, um penhasco de giz –
confundem-me a realidade e inebriam-me como um romance
antes de adormecer. São entusiasmos partilháveis, cintilações
fugazes, amores de beira-gare. Enquanto, com denodo
e sem pressa, aguardo a dissipação do mistério maior,
o espanto de que as tempestades são o fogo-de-artifício.

Miguel Martins