Arquimedes


Nos líquidos perscrutou
o segredo vertical
de uma força que achou:
descobrir é casual
quando muito se pensou.

Eugénio Lisboa

Poema


A noite está líquida oclusa vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se de memória

e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos na inconsciência dos prédios
sobre a cidade a cidade a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos baleado
assassinado corrupto perdido

o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia

a noite é um coral magnífico na noite.

Manuel de Castro

Alerta


Grita filha !
há uma aranha
Na brancura da parede
Que peçonhenta tamanha
Vai tecendo sua rede.
Grita filha !
Essa fobia
É protecção natural
Contra a aranha sombria
Que além de símbolo
é mal !
Grita com todas as forças !
Grita porque há mesmo perigo
Essa aranha uma cruz negra
é o pior inimigo.
Por meu amor não te cales !
Grita filha
Tua mãe
Impele-te pra que fales :
Contigo grito também !
Essa aranha que se estende
Tem o passo marcial
Com fúria que surpreende
O incauto em voz fatal.
Grita filha
O bicho imundo
Sai vertiginosamente
Da sombra vinda do fundo
Em veneno de serpente.
Tal a jibóia medonha
Enrola-se abraça o mundo
Pra ir crescendo em peçonha.
Introduz-se em toda a parte
Tudo corrói e desfaz
É inimiga da Arte
Do Ser Humano da Paz.
Grita filha !
Mas tão alto
Num grito tão verdadeiro
Que desperte em sobressalto
O que não quer ver primeiro.
Essa aranha pestilenta
Odeia a própria Cultura
Em fogueira que alimenta
Livro após livro censura.
Opõe à Humanidade
A sua força brutal
Por onde ela passa invade
Mata o constitucional !
É um monstro repelente :
Primeiro ataca o mais fraco
Para ir seguidamente
Oculta em cada buraco
Destruir a Liberdade.
Inimiga da diferença !
Grita !
Minha filha Grita !
Faz ouvir tua presença.
Aponta o bicho feroz
Mostra-o sacode os amigos
Com a força da tua voz !
Grita !
Esse enredo de perigos !
Grita filha ! Desta vez
Esse grito é racional
Porque essa aranha é o não
Ao direito Universal.
Sem medo abre tua boca !
Grita alto ! Grita forte !
Porque toda a força é pouca
Para lutar contra a morte.
Grita ! Grita minha filha
não te cales nunca mais :
não se veja outra Bastilha
Prendendo os próprios jornais !
Que teu grito seja infindo
Circule dê volta ao mundo
Jovem voz entusiástica
Erguendo o povo profundo
Contra a bandeira suástica.

Marília Gonçalves

Já me sabem às folhas dos herbários


Já me sabem às folhas dos herbários
fósseis com pó de urânio nas entranhas
preparando a explosão

já elas a si próprias se recusam
já de súbito alheias.....inimigas
seu mercúrio destrói-se pulveriza-se

um osso mudo trespassando as portas.

Vasco Marques

Canção Proibida


proscrita é a voz
que grita e não cala
a raiva que estala
quando estamos sós
assim nós ficamos
a cerrar os dentes
nas mãos as sementes
que não semeamos

está por toda a parte
o duro cantar
de vir ou rachar
sem jeito nem arte
mais fero que manso
efeito sem causa
em busca da pausa
de um magro descanso

pele ao abandono
macia e suada
agora molhada
na noite sem sono
do sémen que nasce
na flor das marés
dos dedos dos pés
aos olhos da face

desejo que queima
por dentro e por fora
sempre à mesma hora
em penosa teima
a trova emudece
se a morte o levar
se a cidra acabar
a noite arrefece

porque mata e mói
calar esse pranto
ai que custa tanto
saber onde dói
venha o que vier
nós sempre morremos
dos medos que temos
num longe qualquer.

Paulo Barrosa

oh formosíssima senhora
que não minha
ainda que por minguada
suspensão
dos ponteiros do cronómetro
peço-vos
com grã e diplomático cuidado
que desligueis o latim facínora
do canídeo portátil
que vos vassala a luxuosa
impunidade do decote

talvez assim o galã
à vossa destra bondade
possa por fim
apaziguar
o romeu histérico do seu ceptro.

João Rios

Se as Noites Existem


Se as noites existem,
e elas existem e passeiam
nos telhados das casas dos amigos,
e, às vezes, não há telhados
mas só mesas e candeeiros
onde miam os gatos e cai
a chuva e se embalam
os amigos, a água que entrou
pela porta
e nos amigos
deve secar no estendal da palavra.

Se as noites existem e
elas existem se não há como
as não deixar sair
pelas janelas das casas,
e só os gatos, na verdade, entram e saem
ao mesmo tempo
porque não são exactamente de dentro
ou de fora
e miam mas nunca caem só,
como a chuva,
há sempre mais telhados do
que amigos
ou abrigos.

Isto, se as noites existem.

Se as noites existem, e elas existem
quando dá prazer escrevê-las
mesmo que caiam dos telhados
ou em cima de nós,
que estamos à mesa e não
procuramos os gatos
para secar no estendal da palavra,
porque esses já se sabe que existem
e ninguém escreve sobre
coisas que existem
ou mesmo sobre os gatos para
que deixem de miar
mas antes para que não chova
quando entram ou saem.
Como os amigos.

Se as noites existem
há um lado de cá e um
lado de lá
das portas, das noites, das chuvas escritas.
Há livros que iluminam o caminho,
quando em passeio, e que são
lugares onde não se entra nem
se sai
nos quais nunca se está tão longamente
dentro do mundo como se
pode estar, por exemplo,
dentro de um livro.
Então, temos mais pessoas
do que poemas em comum.

Isto, se as noites existem.

Mas se há noites que nunca voltam
da escuridão
ou dos telhados que chovem estendais e, às vezes, palavras,
é bom que se deixe acesa a luz
para os amigos ou para os gatos,
se os amigos já cá não estão.
Para que retornem a casa.

Minês Castanheira

Não meças o amor pelo tempo que dura;
Ontem amei-te mais nessa hora tão ligeira,
Senti maior prazer, gozei maior ventura,
Do que se ao pé de ti passasse a vida inteira.

Deixa que esta paixão termine com o dia,
Efémera recém-nascida à madrugada,
E que ao cair do sol, nessa hora de poesia,
Deixou pender no chão a fronte desfolhada.

Fiquemos sempre assim, um ao outro ignorados
Nestas vagas regiões duma paixão nascente.
Sigamos cada um caminhos separados;
Com uma hora de amor a alma é já contente.

Júlio Dinis