Incêndios às Rimas


Explosão fictícia
Metáfora desatenta
Bombeiros sem a polícia
O povo não aguenta

Grita alto a Patrícia
O fogo sai da marcha lenta
Tudo consome com malícia
A aldeia já esquenta

O rugido dos trovões
Desaba em grande chuvada
E apaga aqueles tições

Chega a paz na madrugada
Descansem os aldeões
De uma noite incendiada.

José Azevedo Nóbrega

Poeminha de Insatisfação Absoluta


O que me dói
É que quando está tudo acabado
Pronto pronto
Não há nada acabado
Nem pronto pronto
Pintou-me a casa toda
Está tudo limpado
O armário fechado
A roupa arrumada
Tudo belo, perfeito.
E no mesmo instante
Em que aperfeiçoamos a perfeição
Uma lasca diminuta, ténue, microscópica,
Não sei onde,
Está começando
Na pintura da casa
E as traças, não sei onde,
Estão batendo asas
E a poeira, em geral, está caindo invisível,
E a ferrugem está comendo não sei quê
E não há jeito de parar.

Millôr Fernandes

Bélico, 1999


As armas, munições, armazenadas
são muitas vezes mais suficientes
para extinguir da Terra seus viventes,
e continuam sendo fabricadas.

Revólveres, canhões, fuzis, granadas,
torpedos, mísseis mis, bombas potentes,
festim, balas Dum Dum, cartuchos, pentes,
martelos, foices, paus, facões, enxadas.

Romanos, que eram bons de guerra e paz,
disseram: "Si vis pacem, para bellum.":
Parece que os modernos vão atrás.

Não quero exagerar no paralelo,
mas quanto menos ronda a bota faz,
mais folga ostentará o pé de chinelo.

Glauco Mattoso

Quem Ri Quando Goza


quem ri quando goza
é poesia
até quando é prosa

Alice Ruiz

 


Sebastião Nunes

Lembrança de Maio


Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco,
incensado ar de velas.
Santa sobre os abismos,
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.

Adélia Prado

Triunfo dos Poetas


bebes permanente
em penas de tinta.

salvas a mancha
que de linhas
te (es)corre
nas veias.

não ressaques.

o bairro das letras
é aqui ao lado.

Lápis Voador

Apenas Poesia

a Manuela Ribeiro

Hoje as calçadas amanheceram com o branco
da poesia a iluminar-lhes o orvalho da madrugada.
Alguém derramou um punhado desordenado de poemas
sobre as pedras nuas dos caminhos e dos becos da ilha;
os muros arrumaram-se em volta das rimas e dos versos livres
e as paredes de repente caiaram-se de palavras límpidas
como as penas dos gansos brincando no convés das ribeiras.

É o Dia do Sol espumando a água dos vulcões silenciosos
a invadir os cadernos alvos de apontamentos com as flores
e as estrelas dos poetas embalados pelas ondas do mar;
canta as ruas, as árvores e ama as casas, os velhos cansados
e as crianças que se escondem alvoraçadas entre as mãos da mãe;
assim procura viver as aventuras dos barcos, habitar as sombras,
acordar a solidão dos ventos, amainar o pulsar do coração dos homens.

Hoje é o dia de partir em busca das brisas suaves da primavera,
o momento de encantar as serpentes, de aplainar os socalcos das montanhas,
de aprender novos cânticos no murmurar dos riachos, na voz dos pássaros.
Hoje é o dia do louvor aos hinos, às hossanas, aos abraços de amigos
vencendo as agruras e os medos das distâncias, às cartas po escrever,
aos segredos bem guardados, ao respirar apressado do amor.
É hoje o dia. O resto dorme escondido nas entrelinhas, nas malhas da poesia.

José António Gonçalves