Requerimento para Existir


Ou Como Ensinar um Camaleão a Passar por Fotocópia Autenticada

O formulário despontou em mim um eczema.
Primeiro uma comichão tímida no subsídio,
depois pústulas no orçamento,
até que acordei coberta de burocracia metastática.

No campo "Intenção", escrevi "existir".
Erro. O sistema não reconhece verbos sem carimbo.
Reformulei para: "Requerimento para ocupação precária do ar que respiro".
Aceite com ressalva.
(Sugestão da funcionária: "Reduza a subjectividade, aumente a conformidade".)

As testemunhas falharam a audição.
A primeira foi eliminada por excesso de humanidade.
A segunda esqueceu-se do número do documento de identidade.
A terceira ficou presa no paradoxo de um formulário
onde o tempo se dobra sobre si mesmo.

Resultado: indeferido por excesso de identidade.

Ensino-me a sorrir sem tremer:
— Levantar a sobrancelha, dobrar a espinha, carimbar o espírito.
A funcionária aplaude a minha tentativa
e recusa o meu pedido com entusiasmo.

Despertei metamorfoseada em requerente sem rosto.
No fundo da sala, um vulto assina sem mãos.
Kafka assente do outro lado do balcão,
preenche o mesmo formulário há cem anos.

Meses depois, recebo uma resposta escrita em caligrafia ilegível:
"O seu pedido foi arquivado na pasta 'Erro Cognitivo'.
Sugerimos actualizar a sua identidade para um formato mais compatível.
Caso persista na ilusão da autonomia, consulte um notário ou um padre.
(P.S.: A sua sombra foi processada como clandestina.
Favor apresentar comprovativo de existência alternativa.)"

Ora phoda-se!

Enquanto isso, no quintal:
remexo a terra, desfaço torrões com as mãos,
e semeio alfaces, meloas e nabiças.
Sem comprovativo de intenção, sem assinatura reconhecida.

Não sei se nascerão, mas ao menos,
não precisarão de despacho favorável para brotar.

Fátima Vale